Foi de Roque de Brito Alves uma das primeiras visitas que Alexandre e eu recebemos, quando, entre 2015 e 2019, estivemos à frente do Diário de Pernambuco. Com elegância, chamou-nos a atenção para a nossa responsabilidade. O Diário, advertiu-nos, está no diminuto rol das instituições pernambucanas seculares. De relevância transcendente. Ao lado da Faculdade de Direito do Recife, do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano e do Tribunal de Justiça. Tivemos a honra de continuar publicando seus artigos que nos enviava com regularidade.
Foi com tristeza que vi, no grupo da Academia Pernambucana de Letras Jurídicas, o alerta dos confrades Sílvio Neves Baptista e Fernando Araújo, entre outros. Uma foto mostrava parte da biblioteca de Roque sendo jogada numa calçada da Praça de Casa Forte. Alguém que assumiu a posse de sua morada deve ter posses. Mas não entende o valor dos livros. O resgate veio rapidamente pela diligência e sensibilidade da acadêmica Marta Brito Alves Freire, defensora pública e sua sobrinha. Os livros foram por ela recolhidos, com a ajuda de bibliotecária contratada. Inventariados e organizados, vão ser doados a uma biblioteca. Agora como queria Roque.
Livros. Bem que se vai tornando escasso. As pessoas sentem-se “atualizadas” por se contentarem com o instantâneo dos posts nas redes sociais. Vídeos e áudios, de preferência. Curtos, porque estão perdidas no frenesi da instantaneidade. E da veleidade de se imaginar capaz de tudo seguir. Superficialmente. Em vertigem. E sem controle autônomo, porque o que aparece em suas telinhas é determinado alhures por algoritmos das “big techs” que os organizam com a lógica do lucro e sem transparência. Lucro que advém das interações potencializadas pelo escatológico, pela desinformação e pelo ódio. Em degradação do pensamento.
Livros amados por Roque, que nos deixou em 2020 por culpa da malvada epidemia. Dia desses, Michael Barone, grande intelectual americano, perguntava-me sobre qual a melhor invenção para aquele momento em que estamos numa longa fila ou em ambiente sem wifi. E puxou do bolso de sua casaca um fabuloso invento tecnológico que ainda hoje continua mudando o mundo. Um livro. Que não depende de bateria, nem de conexões. Que pode ser rapidamente consultado e anotado. Não que ele, nem eu, desgostemos do livro eletrônico ou da informação que obtemos nas redes sociais. Mas é saber que ninguém é “tecnológico” ou “atualizado” porque despreza o velho companheiro impresso. Podemos nos valer dos dois. Do e-book para levá-los em viagens e para acessá-los mesmo antes que chegue a encomenda do impresso.
Em
viagens, muitos costumam se informar sobre o lugar visitado em conversas com os
motoristas de taxi ou uber. Ou com os garçons. A esses poderiam ser
acrescentados, com grande vantagem, os livreiros. De grandes livrarias por esse
mundão afora. Blackwells, Bertrand, Ateneo, Barnes & Noble, Cultura,
Saraiva, Leitura, Fnac, Travessa, Shakespeare & Company, Kinokuiya. Foi nesta
última que Patrícia e eu, nessas andanças mundo afora, ouvimos a melhor
explicação sobre o funcionamento das instituições no mundo árabe.
Não são poucos os lares de gente com poder político e econômico onde tem de tudo. Lustres de cristal Baccarat ou da Bohemia. Obras de arte e móveis do mais fino design dinamarquês. Colares de diamantes. Outras joias de ouro e prata. Algumas que justificam até as carteiradas de fardados quando a Receita apreende a tentativa de contrabando das Arábias. Mas não raramente o livro, este grande senhor e mestre das civilizações, está ausente dessas residências. Tenho curiosidade de saber quantos livros existem na casa do ex-dignitário que pretendia surrupiar o patrimônio público recebido das Arábias. Certamente não mais que fuzis e pistolas. E se livros houver, quantos ele leu. Na outra ponta, adoraria ter conhecido o acervo de Roque. Que imagino ser da dimensão do de um Ruy Antunes ou Fernando V. Coelho, seus colegas da academia. Ruy que, certa feita, mostrando suas joias de papel aos alunos embevecidos, indagou-me o que eu estava lendo. “Espumas Flutuantes, de Castro Alves”. Deixando-nos maravilhados, sacou de uma das estantes uma primeira edição com dedicatória do poeta condoreiro. Adquirira no sebo. Que ele sempre frequentava quando circulava a notícia de que a família de algum intelectual se desfizera do acervo do parente. “No meio de tantos livros apinhados, sempre encontrávamos alguma joia rara. Como esta edição do ‘Espumas Flutuantes’. E aí tínhamos que disfarçar o velho coração batendo, para adquiri-lo em meio a outros por preços que podíamos suportar”.
O gesto de Marta honra seu tio e todos os que sabem que sem livros não se constrói uma civilização.
Maurício
Rands, advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford
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