Com
Tati e Eduardo em viagem, Marina e Júlia, as duas netas, vieram passar o findi
comigo e Patrícia. Tendo dormido em nossa cama, Marina acorda e, sem dizer
nada, dá um beijo gostoso em cada um dos avós. Ternura dela, embevecimento nosso.
Sente-se aconchegada e amada. Logo depois, vêm-me à mente outras crianças. Como
esquecer daquelas que estão sendo feridas ou mortas por bombardeios? Ou que
estão perdendo seus pais e avós? Crianças palestinas, aos milhares. Crianças
israelenses, às centenas, com pais e avós mortos no atentado terrorista do Hamas
ou tomados como reféns.
Marinas e Júlias de dois povos que
sofrem vítimas de dois grupos dirigentes desumanos. Tanto o Hamas quanto a
extrema-direita de Netanyahu distribuem seus horrores a partir de dogmas fundamentalistas,
autoritários e supremacistas. Desumanizando o antagonista, ambos almejam a
extinção do outro. A italiana Francesca Albanese, relatora da ONU para os
direitos humanos na Palestina, em entrevista ao Globo de ontem, fala de um "fracasso
épico" da ONU. "Político, humanitário e jurídico". Ela adverte
que a reação-vingança de Netanyahu está promovendo a limpeza étnica da região.
Está empurrando os 2,3 milhões de palestinos para o sul, para que eles
novamente se tornem refugiados no Egito.
Claro que Israel tem o direito-dever
de se defender dos ataques terroristas do Hamas. Mas um estado não pode
defender seu povo transgredindo as normas mínimas do direito internacional. Os
alvos devem ser militares. A existência de túneis por debaixo das estruturas
civis não permite que um estado bombardeie indiscriminadamente a população
civil. Quando ataca hospitais, Netanyahu ultrapassa todos os limites éticos e
jurídicos. Os profissionais de saúde e os civis que estejam nos hospitais, para
o direito internacional, não se tornam alvos militares. Da mesma forma, quando
bloqueia mantimentos, água, remédios, combustíveis e energia. E quando promove
a colonização violenta da Cisjordânia, assim confirmando as acusações de que a
estratégia do seu governo extremista é a de varrer os palestinos de Gaza e da
Cisjordânia.
Esses crimes de guerra que estão
sendo praticados pelo governo Netanyahu não são a única tática possível para
obter o justo objetivo de derrotar o Hamas e resgatar os reféns. A legítima
defesa não dá direito a tantos excessos. Nem pode ser exercida como vingança e
punição coletiva à população civil de Gaza, depois da falha grotesca dos seus
órgãos de inteligência e defesa. Não por acaso, essa tática tem críticos dentro
de Israel. Como os familiares dos reféns e alguns que foram libertados. “Você
coloca a política acima do retorno dos sequestrados”, como uma das reféns
libertadas disse a Netanyahu segundo o site israelense Ynet. O
ex-primeiro-ministro Ehud Barak criticou a falha estratégica do governo
israelense. Para ele, o objetivo deveria ser destruir a capacidade militar do
Hamas e restabelecer a Autoridade Palestina em Gaza para poder negociar. As
ações deveriam ser divididas em estágios e em obediência ao direito
internacional. Ele adverte que a opinião pública mundial precisa ser convencida
de que a reação de Israel é justa e legal.
O apoio ou a complacência dos EUA e
das principais potências europeias aos crimes de guerra cometidos pelo exército
israelense cria problemas futuros. Alimenta o ódio das novas gerações de
palestinos e do mundo árabe. Inviabiliza potenciais mediadores para uma solução
pacífica. Cria ressentimentos contra o mundo ocidental e levanta dúvidas quanto
aos seus valores. Isso é ruim para as causas da democracia, da liberdade e dos
direitos humanos, eixos fundantes do modelo de estado de direito desenvolvido
pelos ocidentais desde o Iluminismo. A indiferença à reação desmedida de Israel
contra 2,3 milhões de civis é um fracasso diplomático e humanitário. Mas é
sobretudo um fracasso moral. Que se estende a muitos brasileiros. Alguns por
desinformação. Outros por acreditarem que a única tática para enfrentar o Hamas
é a que Israel está praticando. Outros por acharem que o povo palestino, mesmo
oprimido pela ditadura do Hamas, é culpado pelos atos terroristas. Outros,
ideologizados ou sem empatia que não seja para com os seus, acham que a vida de
um israelense vale mais do que a de um palestino. Desumanizam o povo
antagonizado. Há quem, por ingenuidade, negacionismo ou hipocrisia, sucumba à
propaganda da extrema-direita israelense que acusa de defensor do Hamas a todos
os que se insurgem contra o massacre dos palestinos e contra os crimes de
guerra praticados pelo governo Netanyahu. O povo judeu teve a simpatia dos
brasileiros contra a diáspora e o holocausto. Continua a ter diante do ataque
do Hamas. Mas o povo palestino também precisa da nossa solidariedade contra o
massacre e a tentativa de limpeza étnica que lhe está sendo imposta pelo governo
israelense. Nossa solidariedade aos dois povos.
Maurício Rands, advogado formado pela FDR da UFPE,
PhD pela Universidade Oxford
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