Nosso Código Civil
de 2002, que sucedeu o de 1916, divide-se em uma parte geral com três livros
(Pessoas, Bens e Fatos Jurídicos) e uma parte especial com cinco livros
(Obrigações, Empresa, Coisas, Família e Sucessões). Todas as pessoas são
atiingidas pelo CC. O que não ocorre com o Código Penal, antes restrito aos
pobres. Mas que agora começa a ser
aplicado também para o andar de cima. Em 17/4/24, uma comissão de 40 juristas
constituída pelo Senado em agosto de 2023 apresentou um anteprojeto que mexe
com quase a metade CC de 2002. O texto vai ser submetido às comissões e ao
plenário do Senado para depois tramitar na Câmara.
A direção
geral do texto de 293 páginas é a tentativa de destravar a vida das pessoas e
dos negócios. Como reconheceu um dos relatores Flávio Tartuce, procurou-se
incorporar alguns avanços da jurisprudência dos tribunais. Há propostas de atualização
do direito de família, dos direitos patrimoniais e digitais. Busca-se
simplificar os controles, privilegiando os atos extrajudiciais e contratuais.
Para a outra relatora, a prof. Rosa Nery, buscou-se “avançar na tecnologia, nos
mecanismos de produção e na modernidade da circulação de riquezas”.
No direito de família algumas
inovações. Proteção jurídica à definição ampliada de família, reconhecida como
formada por vínculos conjugais e não conjugais nas seguintes modalidades: i) casais
que tenham convívio estável, contínuo, duradouro e público; ii) famílias
formadas por mães ou pais solos; e iii) grupos que vivam sob o mesmo teto e
possuam responsabilidades familiares. Outras visam simplificiar e adaptar novas
necessidades: dispensa do edital de proclamas
para o casamento; requerimento unilateral do divórcio ou da dissolução
da união estável sem precisar de ação judicial; extensão do direito de
convivência aos avós; proteção do vínculo de filiação socioafetivida em
multiparentalidade; presunção de filiação dos nascidos pela utilização de
técnicas de reprodução humana assistida e autorizada; reprodução assistida post mortem autorizada; registro
de nascimento pela mãe que indica o genitor a ser notificado para ratificar o
registro ou realizar o exame de DNA; proibição da barriga de aluguel lucrativa
e da comercialização de gametas humanos; reconhecimento legal da união homoafetiva, assegurando à
população LGBTQIA+ o direito à união civil que antes ocorria apenas na
jurisprudência; continuidade da monogamia tanto para o casamento (denominado
sociedade conjugal, entre cônjuges) quanto para a união estável (sociedade
convivencial, entre conviventes). Ambas
podem ser homoafetivas, visto que os artigos 1514 e 1564-A referem-se a duas
pessoas e não mais a homem e mulher.
No direito das sucessões, incluiu-se
um novo título sucessório, a sucessão contratual baseada em um contrato, ao
lado da sucessão legítima e da sucessão testamentária que é baseada no
testamento unilateral. Essa é uma nova ferramenta para o planejamento
sucessório, atribuindo-lhe maior segurança jurídica. E modifica-se a sucessão
legítima que passa a ter a seguinte ordem: i) descendentes; ii) ascendentes; iii)
cônjuge ou convivente sobrevivente; iv) colaterais até o quarto grau (pela
redação atual do art. 1829 do CC o cônjuge sobrevivente é co-herdeiro com os
descendentes e ascendentes). Quanto ao direito de sucessão do filho gerado por
técnicas de reprodução após a morte do autor da herança, o direito ficou-lhe
assegurado se ele for gerado até 5 anos após a abertura da sucessão.
Importante inovação é o novo livro
sobre o direito civil digital. Definem-se os direitos das pessoas físicas e
jurídicas no ambiente digital. Os direitos
patrimoniais puros se transmitem aos herdeiros. E os direitos personalíssimos
não se transmitem. Os bens digitais do falecido, de valor economicamente
apreciável, integram a sua herança. Portanto, transmitem-se aos herdeiros senhas,
dados financeiros, perfis de redes sociais, contas, arquivos de conversas,
vídeos e fotos, arquivos de outra natureza, pontuação em programas de
recompensa ou incentivo e qualquer conteúdo de natureza econômica, armazenado
ou acumulado em ambiente virtual. Já os direitos da personalidade, tais como privacidade,
intimidade, imagem, nome, honra e dados pessoais, inclusive mensagens privadas
são protegidos por leis específicas.
Há dúvidas sobre a oportunidade de revisar
um código que tem apenas duas décadas. Outra preocupação é a atual conjuntura.
A superficialidade e a polarização das redes podem piorar um texto que foi
elaborado por uma comissão que talvez não represente com fidelidade a
diversidade da sociedade brasileira. Embora pela primeira vez tenha tido a
presença feminina. O nível do atual Congresso Nacional é muito baixo. Em termos
de representatividade, mas também em qualidade institucional e ética. Corre-se
o risco de ver o antreprojeto piorar e alguns dos seus avanços serem limados
pelo conservadorismo e fundamentalismo retrógrado.
Maurício
Rands é advogado, professor de Direito Constitucional da Unicap, PhD pela
Universidade Oxford
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