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domingo, 3 de julho de 2022

Distribuindo dinheiro público às vésperas das eleições


Tudo é uma batalha pela narrativa. Acaba de sair a pesquisa “A cara da democracia” (UFMG, UnB, Unicamp e Uerj). 20% dos entrevistados creem que a terra é plana; 36%, que há uma conspiração global da esquerda para tomar o poder; 21%, que a cloroquina cura a Covid-19;  49%, que o coronavírus foi criado pelo governo chinês; e 27%, que o homem nunca pisou na lua. 

Como leciona o jurista pernambucano João Maurício Adeodato, em sua análise retórica realista, a narrativa dominante acaba virando realidade. Pelo menos para os que nela creem. Como os terraplanistas. Ou como os senadores que aprovaram, no dia 30 de junho p.p., a Proposta de Emenda Constitucional nº 01/2022.  A “PEC do Estado de Emergência”. Ou “PEC dos Gastos”. Ou “PEC da Bondade”. Ou “PEC do Vale-tudo-eleitoral”. Ou “PEC Kamikase”. Que sobre ela cada um tem a sua narrativa retórica instrumental. 

Os fins sempre justificarão os meios? Correto o apoio aos 33 milhões que passam fome. Mas a mudança da CF seria o único meio para isso? Não seria possível destinar esses 41 bilhões para pobres, idosos, taxistas e caminhoneiros removendo verbas de outras rubricas menos nobres? Por que o Senado e a Câmara não poderiam ter votado um outro texto alternativo à PEC 01/2022 antes desse ano eleitoral? Por que não um projeto que removesse créditos do orçamento secreto (R$ 19 bi), do fundo partidário (R$ 1 bi), do fundo eleitoral (R$ 4,9 bi em 2022), do custeio dos prédios suntuosos dos poderes em Brasília, ou dos muitos subsídios aos andares de cima? Afinal, responsabilidade social não é incompatível com responsabilidade fiscal. Aliás, a segunda é requisito para a sustentabilidade da primeira. Para que as políticas públicas de apoio aos vulneráveis sejam viáveis no médio e longo prazo, impõe-se que elas não eliminem a própria capacidade do estado de financiá-las. Que elas não retroalimentem a inflação que sempre piora a vida dos mais pobres. Os senadores não-bolsonaristas votaram na manobra do governo e do Centrão com receio da narrativa de que, se a rejeitassem, ficariam contra os pobres. Mas se votassem um outro substitutivo que indicasse de onde viriam os recursos não estariam construindo uma outra narrativa? Talvez mais consistente porque os benefícios teriam sustentabilidade e não teriam data certa para terminar.

A guerra da Ucrânia foi o pretexto. Uma emergência artificial, pois a guerra já dura quatro meses, a fome não surgiu hoje e o decreto de calamidade pública já foi suspenso pelo próprio governo. Objetivo eleitoreiro em desvio de finalidade. A emergência elevada ao texto constitucional – ao ADCT -, claro, pode suspender a aplicação da legislação infraconstitucional. Nesse caso, a PEC 01/2022 excepciona a eficácia da Lei das Eleições (9.504/97, art. 73 § 10º), da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000), da Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2022 (Lei 14.194/2021). E se choca com a EC nº 95/2016 (a do teto de gastos), que acrescentara os arts. 106 a 114 ao ADCT para criar um novo regime fiscal. A última é norma de mesmo ranking. Mas, por ser anterior e mais geral, poderia ter sua eficácia excepcionada por outra norma de igual hierarquia e mais específica. A consequência é que a PEC 01/2022 somente seria inconstitucional se contrariasse as cláusulas pétreas previstas no § 4º do art. 60 da CF/88. Afinal, o poder de emendar a constituição é um poder constituinte derivado. Por isso, não pode reformar as cláusulas pétreas.  

O governo, acusando desespero eleitoral, orientado pelos profissionais do Centrão, imaginou dar um xeque na oposição. Se eles defendem os 33% de pobres que hoje vagam com fome em nossas ruas, não poderiam votar contra o aumento do Auxílio Brasil e do Vale Gás. Se realmente se preocupam com a carestia e a inflação, não poderiam rejeitar a redução do ICMS sobre os combustíveis. Nem o pix caminhoneiro. 

O custo do pacote de bondade, de R$ 41 bi, não é problema para um governo que se elegeu com o apoio da Faria Lima mediante a promessa de que o ultraliberal Paulo Guedes não cometeria as pedaladas fiscais que derrubaram Dilma. Cometem uma pedalada de maiores proporções. O governo que, em tese, tem a responsabilidade de bem administrar o caixa e o equilíbrio fiscal, é quem patrocina mais uma flexibilização do teto de gastos. E sem indicar fontes alternativas de financiamento das novas despesas, como sugeriram, entre outros, José Serra e Cristovam Buarque. A manobra do governo, um paliativo esperto e eleitoreiro, dá um drible nas regras eleitorais que impedem bondades com o dinheiro público às vésperas das eleições. Não encaminha soluções duradouras. E tudo através de uma emenda constitucional de duvidosa constitucionalidade. 

Maurício Rands, advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford

Foto: Nando Chiappetta / Arquivo DP
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