O direito constitucional admite
que as cortes supremas estão autorizadas a exercer um papel contramajoritário para
garantir os direitos fundamentais que protegem a democracia. As constituições
democráticas conferem-lhes poderes para revisar atos dos dois outros poderes
que encarnam a vontade majoritária do soberano, o povo. Constitucionalistas
como o ministro Luís Roberto Barroso (“Os três papéis desempenhados pelas supremas
cortes nas democracias constitucionais contemporâneas”, 2020) têm advogado um
maior protagonismo do judiciário diante da crise de legitimidade do nosso
sistema político. Para eles, as cortes teriam maior espaço para criar direitos pelo
uso da razão e do argumento. Como “intérpretes do sentimento social”.
O problema é que esse maior
protagonismo do STF pode, no limite, conferir um poder constituinte e
legislativo a onze membros que não foram eleitos pelo povo soberano. Por isso,
ao exercer esses poderes ampliados, o judiciário tem que praticar a
autocontenção. Como advertia Alexander Bickel ao analisar a
“dificuldade contramajoritária” (“The least dangerous branch: the Supreme Court
at the bar of politics”, 1986). Os
constitucionalistas alinhados com a tese de Barroso não conseguem explicar as
razões pelas quais o déficit de legitimidade do legislativo seria superado pela
ampliação do espaço decisório do judiciário. Raciocinam como se os membros do
STF gozassem de uma superioridade (moral ou intelectual), mesmo sendo escolhidos
pelos políticos cuja inferioridade é tacitamente sugerida.
Esse maior protagonismo judicial
tem preocupado alguns dos seus próprios membros. O juiz da Suprema Corte dos
EUA Stephen Breyer preocupa-se com a perda
de legitimidade da corte por causa da excessiva politização (“The authority of
the court and the peril of politics”, 2021). Para ele, alguns membros da corte são
percebidos como “políticos de toga”. E isso diminuiria a autoridade das
decisões da Suprema Corte por não serem percebidas como de autoria de árbitros
neutros, justos e eficientes. E que decidem guiados por princípios constitucionais
e legais, não pela política.
Na conjuntura que vivemos no
Brasil, essa preocupação ganha força diante da dificuldade do atual presidente em
aceitar as limitações do regime de freios e contrapesos. Para que o judiciário
exerça esse papel, serve o alerta de autores como Breyer e Bickel. O
afastamento dos princípios de autocontenção e referência ao texto
constitucional não contribui para a legitimação e autoridade do nosso Supremo.
Tomem-se duas decisões recentes do ministro Alexandre Moraes. A primeira foi a autorização
à polícia para baculejo e quebra dos sigilos digitais e fiscais dos empresários
bolsonaristas que trocaram mensagens de Whatsup dizendo preferir “um golpe à
volta do PT”. Sem prova de que estavam praticando algum ato organizativo para derrubar
o regime democrático. Quando permaneceram no campo da liberdade de expressão,
sem cuja proteção os alicerces da democracia estariam comprometidos.
Expressaram uma opinião que, aliás, teria ficado restrita aos participantes do
grupo privado de WhatsApp. Fizeram posts que só vieram ao conhecimento da
opinião pública por causa da decisão do ministro. Efeito contrário ao
pretendido. Esses empresários não poderiam ser punidos por expressarem uma
opinião, por mais repulsiva que seja. Expressar preferência por ditaduras não é
ameaçar a democracia. Cogitar não é crime. Crime seria organizar alguma ação
para atacar os poderes democráticos. Como fez a militante Sara Winter que foi
presa por ordem do mesmo Moraes em 2020 por organizar ataques com rojões ao
STF.
A segunda decisão controversa foi
a restrição à propaganda do governo sobre os 200 anos da independência sob o
argumento de que o uso da cor verde e amarela estaria associado a uma das
candidaturas presidenciais. Que teria “viés político”. A ira do ministro contra o atual presidente não
lhe autoriza a chegar a tanto. Tanto que ele depois a modificou. Mas não deixou
de causar incômodo a quem se preocupa com a autoridade e a credibilidade de que
precisa gozar o STF para atuar como guardião da constituição. Afinal, uma das
funções da constituição é justamente a de limitar o exercício do poder estatal
contra o cidadão. Não se pode invocá-la para determinar medidas abusivas a
serem praticadas por esse poder repressivo. Medidas como essas duas, sob a
pretensão de defender as instituições democráticas, na prática produzem o
resultado oposto. Mormente porque o judiciário, pelo então juiz Sérgio Moro, já
havia desrespeitado garantias individuais como devido processo legal,
imparcialidade do juiz, ampla defesa, contraditório e juízo natural. Ali,
contra Lula e outros. Agora, através do relator do inquérito das “fake news”,
viola garantias fundamentais dos empresários inimigos de Lula. Isso mina a
autoridade moral do STF para continuar desempenhando seu papel de contenção dos
arroubos autoritários do atual chefe do executivo.
Maurício Rands, advogado formado
pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford
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