Steven
Levitsky e Daniel Ziblatt, professores de Harvard, acabam de lançar "Tyrany
of the Minority". O sucesso do "How Democracies Die" animou-os
a continuar a reflexão sobre os perigos que ainda rondam a democracia
americana. Eles criticam a crença ingênua de que a Constituição americana de
1787 seria perfeita e inerentemente democrática. Lembram que seu texto foi
produto de compromissos políticos necessários para que alguns estados,
sobretudo os do sul escravocrata, não se retirassem. Como foram exemplos a
cláusula que manteve a escravidão, inscrita como cláusula irrevogável que só
foi superada em 1865 pela 13ª Emenda, e a representação desproporcional no
Congresso em relação à população dos estados. Ou institutos como a votação
indireta para a presidência (via colégio eleitoral) e o senado (que só foi
eliminada pela Emenda 17). Ou a vitaliciedade dos membros da Suprema Corte. Ou
o sistema do voto distrital.
Os autores analisam as razões pelas
quais a Constituição americana tem favorecido a hegemonia da minoria. A começar
pela rigidez de reforma, só permitida pelo voto de 2/3 de cada uma das casas do
congresso e de 3/4 dos parlamentos dos estados. Mas também por questões
econômicas, sociais e políticas que não permitiram a efetiva participação da
maioria nas decisões do país. A trajetória do Partido Democrático é exemplo. O
partido foi por muito tempo o bastião dos brancos supremacistas que se opunham
à extensão de direitos aos afrodescendentes.
O livro traz uma boa análise sobre
as raízes do deficit democrático dos EUA. Que passam por ressentimentos dos que
foram deixados de fora dos benefícios da globalização e dos que não se adaptaram
à ascensão de imigrantes, mulheres, negros e gays em sua luta por igualdade e
legitimação da diversidade. Fenômenos que não ocorrem apenas nos EUA. Mas, nos
EUA, os autores identificam duas especificidades. A primeira, o nível de
autoritarismo. Enquanto a extrema direita europeia tem se mantido nos limites
das regras do jogo democrático, essa não tem sido a prática da direita
americana que capturou o Partido Republicano. Eles mostram como os dirigentes
do partido, inclusive o RNC, sua executiva nacional, jamais fizeram a crítica à
tentativa de golpe de 6 de janeiro de 2021, cujo inspirador e articulador
queria que o colégio eleitoral o declarasse reeleito a partir da substituição
das listas dos delegados eleitos pelos estados por listas falsas de algumas delegações.
Uma segunda diferença para as democracias europeias é apontada por Levitsky e
Ziblatt. Enquanto os partidos de extrema direita europeia têm permanecido na
oposição ou no máximo em coalisões, nos EUA os extremistas tomaram controle do
governo nacional e assaltaram as instituições.
A análise deles vai além. Para eles,
muitas das causas do deficit democrático americano residem na própria venerada
Constituição. Com rigor analítico, eles realçam como suas instituições acabam
por permitir que minorias partidárias restrinjam os direitos da maioria e até
governem mesmo sendo minorias. O sempre presente risco da tirania da maioria tem
sido evitado pelo constitucionalismo democrático e suas cláusulas (pétreas ou
superconstitucionais) que defendem direitos fundamentais contra o ataque de
minorias conjunturais. E pela atuação contramajoritária que se reconhece às
cortes constitucionais. Mas, nos EUA, hoje o problema é o oposto: quem tem governado
é a minoria. Muitos presidentes republicanos perderam no voto popular, mas
foram empossados por causa das distorções do colégio eleitoral. Em outros
casos, os candidatos votados pela maioria assumem o poder, mas são impedidos de
governar. Por causa de instrumentos como o "filibuster" (o
bloqueio indefinido das votações no Senado), ou o "gerrymandering"
(recorte direcionado da área geográfica dos distritos feitos por legislativos
estaduais), ou as regras eleitorais que dificultam os votos dos negros,
imigrantes e pobres.
Depois de ligar essas falhas da
democracia americana à própria Constituição, os autores relembram que algumas
de seus avanços foram reformas do texto constitucional feitas a partir de
intensa mobilização social. Foi assim no chamado período da Reconstrução que se
seguiu à Guerra da Secessão, quando os negros conquistaram alguns direitos, ou
nos anos 1920, quando as mulheres conquistaram o direito de voto com a Emenda
19, ou no "New Deal" de Roosevelt, ou no movimento pelos
direitos civis dos anos 1960. Em sua conclusão normativa, Levitsky e Ziblatt
indicam reformas, inclusive constitucionais, a serem precedidas de movimentos
sociais e de mobilização da opinião pública. Chegam a apontar 15 medidas
concretas que, embora complexas, eliminariam a tirania das minorias e fariam da
americana uma democracia digna dos sonhos dos "founding fathers".
Um democracia multirracial e inclusiva. Basta lembrar que Jefferson e
Washington foram explícitos ao esperar que a Constituição sempre fosse
atualizada.
Maurício Rands, advogado formado pela FDR da UFPE,
PhD pela Universidade Oxford
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