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quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Um brado pela democracia


Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, professores de Harvard, acabam de lançar "Tyrany of the Minority". O sucesso do "How Democracies Die" animou-os a continuar a reflexão sobre os perigos que ainda rondam a democracia americana. Eles criticam a crença ingênua de que a Constituição americana de 1787 seria perfeita e inerentemente democrática. Lembram que seu texto foi produto de compromissos políticos necessários para que alguns estados, sobretudo os do sul escravocrata, não se retirassem. Como foram exemplos a cláusula que manteve a escravidão, inscrita como cláusula irrevogável que só foi superada em 1865 pela 13ª Emenda, e a representação desproporcional no Congresso em relação à população dos estados. Ou institutos como a votação indireta para a presidência (via colégio eleitoral) e o senado (que só foi eliminada pela Emenda 17). Ou a vitaliciedade dos membros da Suprema Corte. Ou o sistema do voto distrital.

            Os autores analisam as razões pelas quais a Constituição americana tem favorecido a hegemonia da minoria. A começar pela rigidez de reforma, só permitida pelo voto de 2/3 de cada uma das casas do congresso e de 3/4 dos parlamentos dos estados. Mas também por questões econômicas, sociais e políticas que não permitiram a efetiva participação da maioria nas decisões do país. A trajetória do Partido Democrático é exemplo. O partido foi por muito tempo o bastião dos brancos supremacistas que se opunham à extensão de direitos aos afrodescendentes.

            O livro traz uma boa análise sobre as raízes do deficit democrático dos EUA. Que passam por ressentimentos dos que foram deixados de fora dos benefícios da globalização e dos que não se adaptaram à ascensão de imigrantes, mulheres, negros e gays em sua luta por igualdade e legitimação da diversidade. Fenômenos que não ocorrem apenas nos EUA. Mas, nos EUA, os autores identificam duas especificidades. A primeira, o nível de autoritarismo. Enquanto a extrema direita europeia tem se mantido nos limites das regras do jogo democrático, essa não tem sido a prática da direita americana que capturou o Partido Republicano. Eles mostram como os dirigentes do partido, inclusive o RNC, sua executiva nacional, jamais fizeram a crítica à tentativa de golpe de 6 de janeiro de 2021, cujo inspirador e articulador queria que o colégio eleitoral o declarasse reeleito a partir da substituição das listas dos delegados eleitos pelos estados por listas falsas de algumas delegações. Uma segunda diferença para as democracias europeias é apontada por Levitsky e Ziblatt. Enquanto os partidos de extrema direita europeia têm permanecido na oposição ou no máximo em coalisões, nos EUA os extremistas tomaram controle do governo nacional e assaltaram as instituições.

            A análise deles vai além. Para eles, muitas das causas do deficit democrático americano residem na própria venerada Constituição. Com rigor analítico, eles realçam como suas instituições acabam por permitir que minorias partidárias restrinjam os direitos da maioria e até governem mesmo sendo minorias. O sempre presente risco da tirania da maioria tem sido evitado pelo constitucionalismo democrático e suas cláusulas (pétreas ou superconstitucionais) que defendem direitos fundamentais contra o ataque de minorias conjunturais. E pela atuação contramajoritária que se reconhece às cortes constitucionais. Mas, nos EUA, hoje o problema é o oposto: quem tem governado é a minoria. Muitos presidentes republicanos perderam no voto popular, mas foram empossados por causa das distorções do colégio eleitoral. Em outros casos, os candidatos votados pela maioria assumem o poder, mas são impedidos de governar. Por causa de instrumentos como o "filibuster" (o bloqueio indefinido das votações no Senado), ou o "gerrymandering" (recorte direcionado da área geográfica dos distritos feitos por legislativos estaduais), ou as regras eleitorais que dificultam os votos dos negros, imigrantes e pobres.

            Depois de ligar essas falhas da democracia americana à própria Constituição, os autores relembram que algumas de seus avanços foram reformas do texto constitucional feitas a partir de intensa mobilização social. Foi assim no chamado período da Reconstrução que se seguiu à Guerra da Secessão, quando os negros conquistaram alguns direitos, ou nos anos 1920, quando as mulheres conquistaram o direito de voto com a Emenda 19, ou no "New Deal" de Roosevelt, ou no movimento pelos direitos civis dos anos 1960. Em sua conclusão normativa, Levitsky e Ziblatt indicam reformas, inclusive constitucionais, a serem precedidas de movimentos sociais e de mobilização da opinião pública. Chegam a apontar 15 medidas concretas que, embora complexas, eliminariam a tirania das minorias e fariam da americana uma democracia digna dos sonhos dos "founding fathers". Um democracia multirracial e inclusiva. Basta lembrar que Jefferson e Washington foram explícitos ao esperar que a Constituição sempre fosse atualizada.

Maurício Rands, advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford


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