Ratificando
sua relevância para a história do jornalismo brasileiro, o Diário de Pernambuco
esteve no epicentro do recente julgamento do STF sobre a liberdade de imprensa.
No último dia 29/11/23, julgou o Recurso Extraordinário 1075412 em ação
ajuizada por Ricardo Zaratini contra o Diário de PE, atingido por uma entrevista
de Wandenkolk Wanderley, publicada pelo DP em maio de 1995. O entrevistado,
homem do aparato repressivo da ditadura, responsabilizou-o por um atentado a
bomba, em 1966, no Aeroporto dos Guararapes (PE). No processo, o DP foi
condenado a indenizá-lo. Na 1ª instância, foi fixada uma indenização a ser paga
pelo jornal. No TJ-PE, o Diário foi isentado de responsabilidade civil. Como
bem esclareceu o voto do revisor desembargador Luiz Carlos Figueiredo, "o
jornal não emitiu naquela entrevista, qualquer juízo de valor sobre o atentado
ocorrido em 1966 no Aeroporto dos Guararapes. Tampouco houve, da leitura em sua
íntegra, qualquer direcionamento naquela entrevista para que fosse caluniada a
pessoa do apelado ou afetadas a sua honra e moral, no que se verifica que o periódico
apenas exerceu o seu direito de informar questão de relevante interesse
público, sem que houvesse, para tanto, exorbitado desse seu poder/dever". Em
2016, no STJ foi fixada uma indenização que acabou confirmada pelo STF. Em seu
julgamento - no Recurso Extraordinário 1075412 - o STF fixou a Tese 995 da
repercussão geral. Reafirmou a proteção da Constituição à
liberdade de imprensa baseada no binômio liberdade com responsabilidade,
admitindo, em certos casos, a responsabilização dos meios de comunicação por
entrevistas veiculadas.
Autoritários nunca toleram a liberdade de
imprensa. Getúlio Vargas outorgou a Constituição de 1937, que previa a censura
à imprensa através do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). A ditadura
militar de 1964-1985 impôs a Lei nº 5.250, de 9/2/1967, que previa a censura
prévia. A Constituição de 1988 rompeu com essa tradição, em cujo art. 220 ficou
garantida a liberdade de manifestação do pensamento, criação, expressão e
informação, proibindo-se que a lei contenha dispositivo capaz de embaraçar a plena
liberdade de informação jornalística, vedando-se qualquer forma de censura. A
despeito desse texto, a Lei de Imprensa só veio a ser julgada inconstitucional
em 2009, na ADPF 130. Assim, o marco institucional subjacente ao julgamento do
STF no caso do Diário era inquestionavelmente o da ampla liberdade de expressão
e imprensa. Os meios de comunicação e o poder judiciário devem, pois,
sujeitar-se a esse marco.
No item 2, o Tema 995 previu a
responsabilização civil da empresa jornalística quando: (i) à
época da divulgação, havia indícios concretos da falsidade da imputação; e (ii)
o veículo deixou de observar o dever de cuidado na verificação da veracidade
dos fatos e na divulgação da existência de tais indícios. Essa possibilidade
atraiu críticas que vislumbraram a possibilidade de que os juízes possam
interpretar subjetivamente quais seriam os indícios da falsidade da fala dos
entrevistados. E quais seriam os cuidados a serem observados pelos meios de
comunicação. Na dúvida alguns órgãos poderiam optar por não realizar
entrevistas controversas que poderiam atrair indenizações. Outros, seriam
injustamente punidos. E, com isso, o livre circular de ideias, ainda que
extravagantes ou minoritárias, seria prejudicado. Perderia a democracia. Um
resultado antagônico ao espírito do art. 220 da CF.
Percebendo
a ambiguidade do texto do Tema 995, o presidente do STF Luís Roberto Barroso,
já na sessão seguinte, apressou-se em esclarecer que, "como regra geral,
um veículo de comunicação não responde por declaração prestada por
entrevistado, salvo se tiver atuado com intenção deliberada (dolo), má-fé ou
grave negligência". Nesses termos, que não constaram da redação do Tema
995, a liberdade de expressão e o espírito do art. 220 estariam melhor
protegidos. O STF faria bem se revisitasse o Tema 995 e aperfeiçoasse a sua
redação para deixar claro que a responsabilização dos veículos somente poderia
ser feita em caso de dolo, má-fé ou grave negligência. Assim poderia eliminar a
subjetividade do termo “dever de cuidado” e sanar a falta de critérios
objetivos para a configuração de “indícios concretos de falsidade”. Com uma tal
redação, o STF estaria corrigindo injustiças. Como a que vitimou o Diário de
Pernambuco que acabou condenado a pagar uma indenização que, embora tivesse
sido afastada pelo TJPE, acabou sendo restabelecida pelo STJ e pelo STF. Ao
julgar o Rext, o STF poderia muito bem ter proposto um texto na direção da fala
do ministro Barroso e, ao mesmo tempo, dado provimento ao recurso do Diário
para afastar a condenação do STJ. Porque, como bem mostrou o voto do revisor
Luiz Carlos Figueiredo no TJPE, o Diário, naquele caso, não deixou de adotar os
cuidados preconizados pelo Tema 995. Nem imputou qualquer responsabilidade a
Ricardo Zarattini, que depois foi inocentado de participação no atentado, de
acordo com documentos apresentados pela Comissão Estadual da Verdade em 2013.
Voltarei ao assunto por entendê-lo crucial para a preservação da liberdade de
imprensa e da dignidade da pessoa humana.
Maurício Rands, advogado formado pela FDR da UFPE,
PhD pela Universidade Oxford
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