Escrevo
no Dia dos Reis, o 06 de janeiro em que os reis magos, depois feitos santos Melchior, Gaspar e Baltazar, visitaram
o menino Jesus recém-nascido. Guiados pela epifania da Estrela de Belém. Fim
das festas. Desarmam-se os presépios e os enfeites natalinos. Começa o ano. Na
revista Il Venerdi di Repubblica, leio reportagem sobre a saga de Massimo, um
marrroquino refugiado há 8 anos vivendo entre os 2 mil moradores das ruas de
Milão. Um cotidiano que começa com uma noite de frio mal dormida, em frente a
uma loja que vende, a apenas um metro do seu leito improvisado, um sapato de
1490 euros. Massimo fala ao repórter sobre o desprezo com que é tratado, as
muitas filas e horários para comer algo nas estruturas oferecidas pela
prefeitura, tomar um banho que teve que marcar 4 dias antes, ou ir ao banheiro.
Fala dos companheiros de jornada que já morreram no frio das ruas invernais da
cidade. E fala da desesperança que lhe acomete, aos 51 anos.
Na Revista
Piauí de janeiro, uma reportagem sobre a rede social chinesa Kwai mostra como
ela conquistou 48 milhões de usuários no Brasil. O modelo é o da disseminação
de vídeos curtos com conteúdos muitas vezes falsos. A Kwai impulsionou a candidatura
de Bolsonaro mais do que a de Lula. Uma análise interna feita a 20 dias da
eleição mostrou que 82% do crescimento do perfil de Bolsonaro na rede foi
turbinado com sugestões da própria plataforma para seguir o perfil, contra 46%
de Lula. E chegou a criar contas falsas e a clonar contas de outras plataformas.
Trata-se de caso raro em que se prova que uma rede social produz conteúdos, muitas
vezes irregulares, ainda que contratando uma agência terceirizada. Esses
conteúdos falsos comprados pela Kwai e postados em sua rede foram pródigos em
fake news sobre urnas eletrônicas, vacinas contra a Covid-10 e intervenção
militar. Para a Kwai, vale tudo para conquistar audiência. A matéria faz um
diagnóstico de como as práticas irresponsáveis das grandes plataformas acaba
por multiplicar os rancores já existentes, ao disseminar conteúdos de ódio, abjetos
ou falsos.
Desde
outubro, assistimos relatos sobre as torturas e execuções perpetradas pelos
terroristas do Hamas contra as vítimas israelenses do 7 de outubro. Na tv, nas
rádios e nos jornais, as cenas do massacre do governo de Israel contra os civis
palestinos sob argumento de ser esta a única maneira de atingir os terroristas
do Hamas. E ouvimos a reação das pessoas reproduzindo rancores e a lógica
binária maniqueísta. Muitos, indignados com os 23 mil civis palestinos mortos e
o bombardeio indiscriminado à faixa de Gaza, deixam de criticar a ditadura que
o Hamas impõe ao próprio povo e o propósito de destruir Israel. Outros fazem
vista grossa aos crimes de guerra cometidos pelo governo de Netanyahu em sua
vingança indiscriminada contra todo um povo.
Acnur, Médicos sem
Fronteiras, Cruz Vermelha, ONGs, Igrejas, sindicatos e tantas outras
instituições reúnem pessoas de boa vontade e recursos para aliviar tantos
sofrimentos. Outras pessoas, de menos boa vontade, preferem atacar essas
instituições. Fazem ou apoiam CPIs como a da Câmara dos Vereadores de São Paulo
contra ONGs e contra o padre Júlio Lancellotti, cuja vida é dedicada ao amparo aos
moradores de rua de SP. Essas pessoas, além de nada fazerem, ainda atrapalham.
Mas nenhum deles deixou de se emocionar nas festas do último Natal. Desejaram o
bem às pessoas. Da sua família, de suas bolhas ou do estrito ciclo de amizades,
bem entendido. Os moradores de rua, refugiados e deserdados da terra... Ah que
desses cuidem os outros. Sobretudo "os governos que consomem tantos
impostos"...E os políticos que "nada fazem e são os únicos culpados
de tanta iniquidade".
A epifania dos reis magos bem que
poderia se repetir neste 2024. De outra forma. Que nos fossem revelados
caminhos e atitudes capazes de atenuar os descaminhos que hoje catalisam tantos
rancores e tanta desinformação na internet. E tanta indiferença aos dramas dos
moradores de ruas, dos imigrantes e das vítimas do terror das guerras. Não
basta culpar os governos e os políticos. E as nossas próprias responsabilidades
e culpas?
Maurício Rands, advogado formado pela FDR da UFPE,
PhD pela Universidade Oxford
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