Por Eliza Brito
Quanto maior o número de sintomas de vício alimentar, menor o consumo de alimentos in natura e minimamente processados e maior o de alimentos ultraprocessados. Essa é a principal constatação da pesquisadora Gabriela Carvalho Jurema Santos na sua tese de doutorado "Vício Alimentar e seus Sintomas em Crianças e Adolescentes: associação com o consumo alimentar e estado nutricional", defendida, em abril deste ano, no Programa de Pós-Graduação em Nutrição da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). O trabalho foi orientado e coorientado respectivamente pelas professoras Raquel Canuto, da Pós em Nutrição, e Carol Virgínia Góis Leandro, do Centro Acadêmico de Vitória (CAV)/UFPE.
O vício alimentar consiste em uma alteração crônica do consumo de alimentos, que leva à maior ingestão de ultraprocessados, produtos que passam por diversas fases de processamento na indústria alimentícia e são compostos por altos níveis de calorias, açúcares, gordura saturada, sódio e aditivos alimentares. “Essas alterações envolvem aspectos fisiológicos, como desregulação de sinais de fome e saciedade, presença de sintomas de dependência e comportamento obsessivo-compulsivo”, pontuou a pesquisadora. Ainda segundo ela, os principais sintomas do vício são: ingestão de substâncias em maior quantidade e período mais longo que o pretendido; desejo persistente ou tentativa malsucedida de parar; muito tempo para se recuperar; redução ou abandono de atividades sociais, ocupacionais e recreativas; uso contínuo; tolerância, que consiste no aumento acentuado na quantidade e na diminuição acentuada no efeito; abstinência; sofrimento e comprometimento clínico.
No trabalho, considerando amostras não clínicas, foi identificada a frequência de vício alimentar entre 9,2% dos pesquisados, percentual que fica dentro do limite observado em estudos prévios, que constatam que 5,9% a 10,10% das crianças e adolescentes apresentam a frequência de vício alimentar, em amostras não clínicas. “Uma revisão sistemática, realizada com estudos publicados com crianças e adolescentes, identificou que a prevalência do vício alimentar variou entre os estudos (de 4% a 30,7%), com prevalência mais elevada em amostras clínicas (por exemplo, indivíduos em tratamento para sobrepeso/obesidade)”, completou Gabriela Carvalho.
Também foi observada uma alta frequência de sobrepeso e obesidade entre os participantes do estudo, o que acompanha tendências mundiais. “Em 2020, cerca de 20,7% de crianças dos seis aos 11 anos de idade apresentavam obesidade mundialmente. Na América Latina, cerca de 29,8% das crianças acima de cinco anos apresentam excesso de peso. No Brasil, a prevalência de obesidade infantil foi de 12,2%, sendo 10,8% em meninas e 12,3% em meninos”, detalhou a pesquisadora.
A pesquisa “Vício Alimentar e seus Sintomas em Crianças e Adolescentes: associação com o consumo alimentar e estado nutricional” foi realizada com 273 crianças dos sete aos dez anos de idade, matriculadas em três escolas municipais de Vitória de Santo Antão, na Zona da Mata, de janeiro de 2022 a junho de 2023. De acordo com a pesquisadora, as coletas foram realizadas nas Escolas Municipais Jornalista Assis Chateaubriand, Lídia Queiroz Costa e Pedro Ribeiro. Elas foram escolhidas devido à maior abertura da gestão em receber o projeto e à proximidade com o CAV/UFPE. No total, foram entregues 1.150 termos, havendo um retorno de 273 respostas de interesse.
As idades dos pesquisados, segundo Gabriela Carvalho, representam fases iniciais da vida, que correspondem aos processos de crescimento e desenvolvimento. É uma fase de intensas atividades metabólicas e fisiológicas, que podem ser moduladas a depender da exposição ambiental e promover o desenvolvimento de doenças crônicas a curto e longo prazos. “Além disso, o município de Vitória de Santo Antão possui características de transição nutricional, com um passado de extrema pobreza, associado à predominância de obesidade na população atual”, explicou Gabriela Carvalho, para justificar a escolha do público para a pesquisa.
A autora esclareceu que foram realizados dois estudos: a revisão sistemática, pela qual foi avaliada a associação do consumo alimentar com vício alimentar em crianças e adolescentes, e o estudo original, do tipo transversal, pelo qual foi avaliada a associação do vício alimentar com o estado nutricional em crianças. “Para a avaliação do vício alimentar, utilizamos a Escala de Avaliação do Vício Alimentar para Crianças (YFAS-C). Já para a análise do consumo alimentar, pelo grau de processamento dos alimentos, utilizamos um questionário de frequência alimentar (QFA). E para a avaliação do estado nutricional, utilizamos as curvas de crescimento da Organização Mundial da Saúde (OMS)”, especificou a pesquisadora.
Consumo de ultraprocessados pode provocar mudanças no sistema de recompensa
A composição dos alimentos ultraprocessados gera alterações sobre o sistema de recompensa, como a redução de receptores de dopamina e o aumento dos sintomas de dependência. “Em fases iniciais da vida, onde estes sistemas estão em formação, esses produtos podem provocar mudanças plásticas, comprometendo o comportamento alimentar e resultando em agravos à saúde”, explicou Gabriela Carvalho.
A pesquisadora destacou que, apesar de o seu trabalho não ter constatado diferenças em relação ao estado nutricional dos pesquisados, a literatura tem demonstrado possíveis associações do vício alimentar com alterações do estado nutricional e tem constatado que a maior proporção de adolescentes com vício alimentar apresenta sobrepeso e obesidade. Mas vale ressaltar que, além do vício alimentar, fatores genéticos, fisiológicos e bioquímicos também estão ligados às questões de sobrepeso e obesidade.
“Atualmente, estamos vivendo uma sindemia global que envolve desnutrição, obesidade e mudanças climáticas. De fato, o consumo excessivo de ultraprocessados é um fator envolvido na escala de produção de alimentos, que tem priorizado modelos hegemônicos associados ao agronegócio, ao desmatamento, à extinção da fauna e flora, à grilagem de terras indígenas e à dissolução de hábitos alimentares regionais. Assim, essa alimentação baseada em ‘excessos’ tem favorecido o sobrepeso, sendo este um fator que parece estar sempre sendo retroalimentado por questões ambientais”, disse a autora do estudo.
Para Gabriela Carvalho, o enfrentamento do vício alimentar, especialmente em crianças e adolescentes, exige medidas complexas, como a inclusão desse conteúdo em políticas públicas de alimentação e nutrição. “Com isso, seria reforçada a importância das ações de combate aos alimentos ultraprocessados em programas governamentais como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos”, afirmou.
Ela também destacou a importância das modificações do ambiente alimentar, sobretudo em regiões periféricas, onde há um crescimento da aquisição e do consumo dos ultraprocessados. “Ações que valorizem os sistemas de agroecologia, mercados curtos de comercialização de alimentos e valorização da culinária como prática emancipatória podem ser efetivas para o enfrentamento do vício alimentar. E também não se pode esquecer da educação alimentar e nutricional como campo de conhecimento e prática para a formação de hábitos alimentares saudáveis, por meio de ações autônomas e contínuas, em todas as fases da vida”, enfatizou Gabriela Carvalho. Ela ressaltou que, individualmente, o tratamento do vício alimentar envolve estratégias psicocomportamentais e farmacológicas. E, no público infantil, “uma introdução alimentar livre de ultraprocessados pode ser efetiva na proteção ao aparecimento deste agravo”, finalizou.
Fonte: Ascom UFPE
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